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O que a política no Ceará tem feito pelos direitos das mulheres mães – PontoPoder

Além de um laço sanguíneo ou afetivo, a família é um conceito jurídico, amparado na Constituição Federal e no Código Civil. Do texto para a prática, contudo, percebe-se que os deveres de criar um filho, entre muitas configurações familiares, recai com mais força na figura feminina. O cenário local, no Ceará, é muito parecido com o nacional nesse sentido.
Cerca de um terço dos lares brasileiros chefiados por uma mulher têm presença de filhos e ausência de cônjuge, segundo dados do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, são geridos por mães solo. No Ceará, 31,1% das famílias são constituídas dessa forma, evidenciando o acúmulo das funções de cuidado e provimento financeiro na maternidade.
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Mas os desafios não se restringem a famílias monoparentais de predominância feminina. Há questões como mortalidade materno-infantil, colocação no mercado de trabalho, acesso a espaços políticos, assistência a filhos com deficiência, entre outras, que são comuns a todos os perfis de maternidade.
Diante de tantas especificidades, nota-se a necessidade políticas direcionadas não só a esse público, mas também aos seus tutelados: os filhos.
“Quando a gente fala de proteção à primeira infância, como estão tendo muitas iniciativas, é claro que vai respingar nas mulheres que cuidam, mas não só isso. É muito importante que se fale também sobre elas, o olhar sobre elas, sobre as demandas que elas têm a trazer”, pontua Malu Zaranza, doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisadora sobre gênero, maternidade, direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Para ela, existe uma “crise do cuidado” que afeta muito mais as mães que os pais, e isso não pode ser ignorado. É todo um impacto sócio-econômico, intensificado por marcadores de classe e raça, que ainda hoje é sentido.
“No Brasil e no Ceará, com a pandemia, isso ganhou status de crise diante do fechamento das escolas e creches, quando (o cuidado) pesou sobre as costas das mulheres. Não que antes não fosse, mas a pandemia mostrou o quanto as mulheres com filhos, em situações de crise, sempre são a primeira face a sofrer, o primeiro estágio a sentir essa crise”, observa.
A mobilização de muitas criou um ambiente político, nos últimos anos, que possibilitou a adoção de compromissos que colocam as mães na ponta e na origem das iniciativas do Poder Público, com ações transversais e intersetoriais. O PontoPoder destaca algumas iniciativas a seguir.
Da concepção ao puerpério
A inédita Secretaria das Mulheres do Ceará reuniu representantes de vários setores e instituiu, em 2024, o Plano Estadual de Políticas para as Mulheres. No documento, há uma série de medidas que devem ser encaminhadas nos próximos anos para o público feminino, mas apenas duas delas tratam diretamente da saúde materna.
Na divisão de “Saúde integral das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos”, o plano cita ações voltadas à saúde da mulher nos municípios, com foco na saúde reprodutiva, por meio do planejamento familiar, atenção e saúde materno-infantil (gravidez e puerpério).
Também menciona a intenção de reduzir a morbimortalidade materna do Ceará, qualificando a assistência no pré-natal, parto e puerpério.
Renda e trabalho
O plano estadual também adota como linha de ação do eixo “Igualdade no mundo do trabalho e autonomia econômica das mulheres” o estabelecimento de uma legislação estadual relativa à universalização da licença-maternidade de 180 dias, à regulamentação e ampliação da licença-paternidade e ao debate sobre licença parental, nos setores público e privado, respeitando à diversidade de configurações familiares.
No âmbito do funcionalismo público estadual, foi ampliada a duração da licença-paternidade de 5 para 20 dias em 2024. “A licença-paternidade assume papel crucial no fortalecimento das relações familiares, na consolidação do vínculo pai e filho e na promoção da igualdade de gênero, inserindo o homem no ato de cuidar, culturalmente atribuído à mulher”, destacou o governador Elmano de Freitas (PT).
Já as servidoras públicas do Estado têm direito a 120 de licença-maternidade, que podem ser prorrogados por mais 60 dias, desde que o pedido seja feito até o fim do primeiro mês de puerpério.
Retomando a questão das mulheres chefes de família – mães solo ou não –, observa-se que a renda do lar é menor nesses casos. A receita média mensal nesses arranjos domésticos é de até dois salários mínimos, segundo pesquisa divulgada em 2023 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Quando adicionado um recorte por raça, percebe-se que a renda das famílias negras foi sempre menor que a das não negras, independentemente do arranjo familiar. Enquanto os domicílios monoparentais com chefia feminina registravam uma média de R$ 2.833, as famílias chefiadas por mulheres negras com filhos tinham renda de R$ 2.362.
Os indicadores mostraram o que se vivencia na prática: um contingente de mulheres que ganha menos se insere de forma precária e leva mais tempo em busca de colocação no mercado de trabalho. Esse quadro faz com seja perpetuada a situação de vulnerabilidade não só da mulher chefe de família, mas de todos os familiares, com a transferência de milhares de crianças e jovens da escola para o mercado de trabalho, para que contribuam com a renda da família
O cenário tanto dificulta a vida hoje, como impede projetos futuros. Em resposta a isso, o governo estadual adotou um dispositivo que dá preferência de acesso desse público a programas de habitação.
É o caso do Entrada Moradia Ceará, que, com emendas adicionadas pelos deputados estaduais, passou a priorizar, na concessão do benefício, mulheres que comprovem serem vítimas de violência doméstica e/ou mães solo atípicas.
Assim, se chefiarem famílias com renda mensal de até R$ 4.400, elas podem adquirir uma casa própria com uma ajuda de R$ 20 mil do Estado no programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal. A expectativa é que o Entrada Moradia receba mais de R$ 200 milhões em investimentos ao todo, colocando as mães em primeiro plano.
Gravidez precoce
Também no âmbito estadual, a Secretaria das Mulheres, em parceria com o Programa Integrado de Prevenção e Redução da Violência (PReVio), toca uma iniciativa voltada às jovens que engravidaram na adolescência.
O objetivo do Projeto Jovens Mães (Projema) é evitar a reincidência de gravidez precoce, incentivar a continuidade escolar e assegurar acesso à proteção social, incluindo um pré-natal completo. A expectativa é atender, até 2026, 1.512 gestantes com idades entre 15 e 21 anos.
Alguns municípios já começaram a cooperar com o programa, como Quixadá e Juazeiro do Norte. São ações tocadas por secretarias de Assistência Social, de Saúde e de outras áreas para fornecer formação profissional e orientações de cuidados a mães precoces.
Na cidade do Sertão Central, por exemplo, a Prefeitura foi além e concedeu ensaio fotográfico a gestantes e kit enxoval para a chegada do bebê.
Já em Juazeiro, o planejamento também envolveu o acompanhamento pós-parto, com quatro visitas domiciliares focadas no reforço à consulta puerperal nos primeiros 45 dias, com garantia do planejamento familiar, acompanhamento do projeto de vida e inclusão em programas e projetos voltados para a primeira infância.
Maternidade atípica
No fim de abril, a Secretaria da Proteção Social (SPS) lançou o programa Ceará TEAcolhe, com assinatura de convênio com 29 entidades para repasse financeiro. Também integra a iniciativa uma plataforma virtual de apoio psicossocial a mães atípicas, com atendimento remoto gratuito e encaminhamento à rede de assistência do Estado. Ainda em fase de teste, contudo, o site está indisponível no momento.
Cada organização receberá R$ 100 mil para custear o serviço prestado às crianças no interior do Estado e na Capital, com o mínimo de 400 atendimentos, cada. Há convênios a vista com outras 11 instituições, visando o mesmo objetivo. Ao todo, são esperados investimento em R$ 4 milhões, oriundos do Fundo Mais Infância Ceará.
Já a plataforma virtual, quando disponível, fornecerá uma equipe de psicólogas, assistentes sociais e advogadas, com acolhimento remoto e gratuito e encaminhamentos à rede socioassistencial do Estado, como Cras e Caps. Quando necessário, ainda garantirá o acesso à medicação com prescrição médica.
Conversa entre diversas áreas
Em nota enviada ao PontoPoder, a Secretaria das Mulheres também destacou a adoção de medidas intersetoriais relativas a vida das crianças e dos adolescentes, que atingem direta e indiretamente as mães. A ampliação na oferta de creches e outros espaços para a primeira infância, como os Centros de Educação Infantil (CEIs), foram destacados – 162 foram entregues e 155 estão em construção.
“Além disso, temos construído equipamentos de convivência social e familiar, e outros como espaços e complexos sociais que possibilitam atividades de esporte e lazer, além de qualificação, sendo uma oportunidade para toda a família”, ressaltou.
A pasta também deu evidência a programas como o Ceará Credi Mulher, de incentivo à capacitação e ao empreendedorismo, e o Selo de Equidade de Gênero e Inclusão, que visa incentivar a igualdade no ambiente de trabalho, assegurando acesso, ascensão, remuneração e permanência de trabalhadores e trabalhadoras sem discriminação de gênero e raça.
Discussões em curso
O Parlamento cearense também discute novas medidas para garantir assistência às mães. O PontoPoder destaca alguns projetos já aprovados e outros em análise por deputados estaduais.
Para o balanço, a reportagem filtrou as buscas por projetos de lei nas proposições da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) pelas palavras “mulher”, “mulheres”, “mãe”, “mães”, “gravidez” e “gestante” apresentadas até às 15h do dia 9 de maio. Veja alguns:
DELIBERADOS
- PL 29/24 – Aprovado em dezembro de 2024 – Fica assegurado, pela Rede Estadual de Saúde Pública do Estado do Ceará, o atendimento psicossocial prioritário a mães e pais que se dedicam integralmente ao cuidado de filhos diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA). (Virou lei)
- PL 1106/23 – Aprovado em março de 2025 – Fica instituída a Campanha de Combate à Discriminação Salarial de Gênero, no âmbito do mercado de trabalho do estado do Ceará, com ênfase nas questões relacionadas à remuneração das mulheres e ao seu esgotamento físico e emocional, em especial, após o período de maternidade. (Virou lei)
- PL 837/23 – Aprovado em abril de 2024 – Ficam assegurados direitos às mulheres que sofrem perda gestacional e neonatal em estabelecimentos de saúde do Estado do Ceará. (Virou lei)
- PL 79/24 – Aprovado em julho de 2024 – dispõe sobre os direitos da gestante e da parturiente no âmbito do estado do Ceará. (Virou lei)
- PL 580/23 – Aprovado em maio de 2024 – Fica instituído o “Mês Estadual Maio Furta-Cor”, dedicado à conscientização, ao cuidado e à promoção da saúde mental de pessoas gestantes e puérperas. (Virou lei)
EM TRAMITAÇÃO
- PL 263/25 – Iniciou tramitação em abril de 2025 – Institui a Política Estadual de Fomento à Empregabilidade de Mães Atípicas
- PL 1141/23 – Iniciou tramitação em novembro de 2023 – Institui o Programa Estadual de Valorização às Mães com Filhos Raros
- PL 194/25 – Iniciou tramitação em março de 2025 – Institui a Política de Estímulo ao Empreendedorismo de Mães Atípicas, no âmbito do estado do Ceará
- PL 341/24 – Iniciou tramitação em maio de 2024 – Institui diretrizes e estratégias para o programa de apoio à saúde mental de mães atípicas nos estabelecimentos públicos de saúde no âmbito do estado do Ceará
- PL 299/25 – Iniciou tramitação em abril de 2025 – Dispõe sobre prioridade no atendimento médico e terapêutico para crianças com deficiência e mães atípicas
- PL 99/25 – Iniciou tramitação em fevereiro de 2025 – Estabelece o direito de as mães amamentarem seus filhos durante a realização de concursos públicos, provas de vestibular, provas do Enem, exames da OAB
- PL 121/25 – Iniciou tramitação em fevereiro de 2025 – Determina, no estado do Ceará, que as unidades de saúde credenciadas no sistema único de saúde – sus, bem como as de rede privada, ofereçam leito separado para as mães de natimorto e mães com óbito fetal
- PL 545/24 – Iniciou tramitação em julho de 2024 – Institui a política de apoio à maternidade nas universidades, que dispõe acerca das diretrizes gerais para o acolhimento de gestantes, puérperas e mães de crianças e adolescentes nas instituições de educação superior do estado do Ceará
- PL 139/25 – Iniciou tramitação em fevereiro de 2025 – institui diretrizes, estratégias e ações para a criação, implantação e implementação do centro de proteção integral das mães atípicas solo/cuidadoras, no âmbito do Ceará
- PL 476/24 – Iniciou tramitação em junho de 2024 – Dispõe sobre diretrizes para a assistência e proteção jurídica, psicológica e socioeconômica às mães de crianças e adolescentes que sejam vítimas de abuso sexual no Ceará
- PL 865/24 – Iniciou tramitação em dezembro de 2024 – Dispõe sobre a política de incentivo à criação de vagas específicas para mães atípicas e de filhos com deficiências em instituições de ensino públicas e privadas no Ceará
- PL 1080/23 – Iniciou tramitação em outubro de 2023 – Dispõe sobre a obrigatoriedade de hospitais e maternidades, públicas e privadas, designarem local individual para acolhimento das gestantes cuja gestação termine em abortamento ou em morte perinatal
- PL 34/24 – Iniciou tramitação em julho de 2024 – Dispõe sobre a criação de programa de orientação para gestantes com abordagem dos cuidados essenciais com o bebê durante seus primeiros seis meses de vida
- PL 545/24 – Iniciou tramitação em agosto de 2024 – Institui a política de apoio à maternidade nas universidades, que dispõe acerca das diretrizes gerais para o acolhimento de gestantes, puérperas e mães de crianças e adolescentes nas instituições de educação superior do estado do Ceará
- PL 30/24 – Iniciou tramitação em fevereiro de 2024 – Concede à gestante com deficiência auditiva em atendimento nos hospitais e estabelecimentos de saúde privados o direito a um intérprete da língua brasileira de sinais – libras, para acompanhar a consulta de pré-natal e o trabalho de parto
Em paralelo, a Alece tem adotado medidas que não só impactam a vida das mulheres mães da porta para fora, mas também na própria atividade parlamentar. Até 2015, as deputadas estaduais do Ceará não tinham o direito à licença-maternidade assegurada na legislação.
Naquele ano, a gestação da então deputada Laís Nunes (hoje, no PT) motivou uma importante mudança no Regimento Interno da Casa, que, por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição Estadual (PEC), passou a prever afastamento por esse motivo.
Antes disso, havia previsão apenas para doenças, assuntos particulares ou para exercer funções em cargos comissionados. Laís não estava doente e nem assumiria cargo comissionado. Se utilizasse o benefício do interesse particular, poderia ficar impedida de tirar outra licença do tipo.
Apesar do avanço, a discussão aconteceu tardiamente, já que a situação se prolongou até o parto acontecer sem o benefício definido. A Assembleia aprovou a PEC que criava a licença maternidade para deputadas a tempo do nascimento do seu filho, mas o seu pedido de afastamento com a nova justificativa ainda precisava ser votado em plenário.
Ela ficou quase duas semanas pós-parto aguardando a regularização da situação. A nova legislação e o aval da Casa ao repouso remunerado vieram alinhados ao que já previa o texto para servidoras estaduais: quatro meses de licença, prorrogáveis por mais dois.
Quase 10 anos após o caso de Laís Nunes, a então deputada Gabriella Aguiar (PSD) pôde utilizar o benefício com a chegada da filha Sara. O nascimento ocorreu em meio às eleições municipais de 2024, na qual ela foi eleita vice-prefeita de Fortaleza.
A atual procuradora da Mulher na Assembleia, deputada Juliana Lucena (PT), informou ao PontoPoder que está em diálogo com outros parlamentares para aprovar medidas de interesse das mães do Ceará.
Além de destacar iniciativas já citadas aqui, ela lembrou do projeto de lei nº 278/2025, que institui a política pública de acolhimento ao luto gestacional, neonatal e infantil no Ceará, oferecendo suporte em momentos de profunda dor e vulnerabilidade.
“Defendo ainda a ampliação da rede de atendimento multiprofissional no SUS, a presença de cuidadores nas escolas, o apoio financeiro específico para mães atípicas e o reconhecimento do cuidado como um trabalho essencial. […] Apesar dos avanços, é preciso seguir ampliando a cobertura de creches públicas, garantindo acesso a serviços de saúde mental e fortalecendo a rede de proteção para mães adolescentes e atípicas”, completou.
